Caravelas 1945 – A caçada americana que terminou em tragédia

 



Por Daniel Rocha

Durante a Segunda Guerra Mundial, o município de Caravelas, localizado no extremo sul da Bahia, tornou-se um ponto estratégico para as operações de patrulhamento aéreo no Atlântico. 

Com a construção da Instalação Aérea Naval, um aeródromo militar em 1944, a cidade passou a sediar uma espécie de base administrada pela Marinha dos Estados Unidos, mudando completamente a dinâmica da região.

Por dois anos, tropas americanas ocuparam o território, trazendo consigo aviões, uniformes e uma nova cultura que impactou a rotina da pacata cidade na Costa das Baleias. No entanto, além dos relatos sobre progresso e curiosidade, há também episódios pouco lembrados que ficaram à margem da narrativa oficial e dos relatos populares sobre esse período.

Um desses episódios ocorreu meses antes da passagem do aeródromo para a Força Aérea Brasileira (FAB), em 7 de agosto de 1945. Um acontecimento trágico marcou os últimos momentos da ocupação americana, deixando cicatrizes na memória dos moradores locais.

Base Aérea Americana – Caravelas (Imagem: IBGE)

Segundo um jornal carioca da época,O Globo, no dia 19 de julho de 1945, cinco militares norte-americanos deixaram o aeródromo armados, alegando que iriam caçar na mata próxima, que ainda preservava uma fauna rica. Sem sucesso na busca por animais, decidiram praticar tiro ao alvo, disparando contra envelopes de correspondência aérea, fixados por eles, em  uma árvore.

O que parecia apenas uma distração inofensiva teve um desfecho fatal: os disparos alcançaram uma propriedade rural próxima conhecida como “Mangabeira”, matando uma trabalhadora que estava a trabalhar na roça.

Um outro morador, que testemunhou o acidente, relatou ao jornal que precisou se jogar no chão para não ser atingido pelos disparos, antes de tentar socorrer a vítima, que infelizmente não resistiu.

Meses depois, o caso foi denunciado e ganhou espaço na imprensa nacional. Com a repercussão, o então juiz de direito da comarca de Caravelas, Manoel Leopoldo de Figueiredo, determinou que os militares envolvidos comparecessem à Justiça dentro de 90 dias para responder pelo crime.

Imagem Ilustrativa. Site Tirabaha

No entanto, lamentavelmente,  não foram encontrados registros documentais sobre o desfecho do julgamento, nem sobre possíveis punições aplicadas aos responsáveis estrangeiros.

O fato de o episódio ter sido revelado apenas meses após a transferência da base para a FAB também levanta questionamentos: houve uma tentativa de silenciamento enquanto os norte-americanos ainda estavam no comando? Ou será que a denúncia foi utilizada politicamente para reforçar o discurso de soberania nacional?

O relato sobre o acontecimento abre um importante debate sobre os impactos da ocupação militar estrangeira e nacional na região. Além disso, reforça a necessidade de recuperar memórias locais, registros históricos e relatos dos moradores que vivenciaram esse período.

Outros episódios igualmente marcantes sobre a presença militar em Caravelas serão explorados futuramente aqui no site, trazendo novas perspectivas e contribuindo para a compreensão desse momento da história de Caravelas e da região da Costa das Baleias, no extremo sul da Bahia.

Referência:
SILVA, Tharles S. “Não adiantou, nós vencemos”: a Segunda Guerra Mundial no Extremo Sul da Bahia. 2022. Tese (Doutorado em Estado e Sociedade) – UFSB, Porto Seguro, 2022.

Daniel Rocha – Historiador graduado e pós-graduado em História, Cultura e Sociedade pela UNEB-X.

Fonte:

Jornal O Globo. Maio de 1946. Acervo site tirabanha.

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Crônica –Você é muito mais do que seus gostos




Por Daniel Rocha

Outro dia, vi um cara sentado no banco da praça tomando um café e fazendo careta. “Esse café é horrível, não é do meu gosto”, resmungou. E logo emendou aquele papo de sempre: “A vida é feita de escolhas, né?” Eu fiquei ali pensando: será mesmo? Ou será que a vida é o que vem antes de a gente poder escolher qualquer coisa?

Essa frase me cutucou: a existência vem antes dos gostos. Parece coisa de filósofo metido, mas na verdade, tem tudo a ver com a vida da gente. Ninguém nasce gostando de moqueca ou de rock. A gente primeiro nasce. E só depois, com o tempo, vai aprendendo o que gosta ou não.

Antes de dizer que prefere doce a salgado, que gosta de filme de ação e odeia novela, curte ou não curte, o a pessoa já estava vivendo, sentindo, tropeçando, convivendo. O gosto é como uma roupa que a gente vai vestindo ao longo da caminhada, não algo que já vem pronto com a gente.

É como dizia o filósofo francês, Sartre: a existência vem antes da essência. Traduzindo: primeiro a gente aparece no mundo, do nada, sem manual. Depois é que vai se descobrindo, se construindo, se inventando. E nesse processo, o que a gente gosta — ou acha que gosta — vai nascendo junto.

Pensa num menino criado no sertão, ouvindo forró desde o berço. Ele vai ter um gosto diferente de quem cresceu na cidade ouvindo MPB ou rap. E não é que um gosto é melhor que o outro, é só que a vida que cada um viveu é diferente. O gosto é só um reflexo disso.

Então, quando alguém diz “nossa, que gosto ruim!”, talvez fosse melhor perguntar: “que tipo de vida essa pessoa viveu pra gostar disso?” Gosto é de rastro. É a marca de onde a gente passou, de quem a gente amou, do que a gente sofreu.

E o cara do café ruim? Continuou ali, reclamando do gosto, mas vivendo. Porque no fundo, antes do gosto, vem isso aí que a gente às vezes esquece de agradecer: o simples fato de estar vivo.


“Até a Última Gota” – Os limites da sobrevivência




 Por Murilo Mello

Disponível na Netflix, Até a Última Gota é mais do que um filme psicológico, é uma experiência que coloca o espectador cara a cara com os extremos da sobrevivência em um mundo onde a indiferença é regra. É também sobre o que a gente é capaz de fazer antes de se chegar ao limite.

A trama acompanha a angústia de uma mãe solo, que, sem dinheiro, sem casa e sem saída, vê sua filha em perigo. Em um ato de desespero, invade um banco e faz reféns, iniciando um impasse que vai além da ação impulsiva. O filme se transforma em um retrato doloroso da luta por dignidade, expondo fragilidades que muitas vezes preferimos ignorar.

No papel principal, Tyler Perry entrega uma atuação crua e visceral, transmitindo cada medo, cada dúvida e cada explosão de força. A protagonista nos faz sentir o peso da precariedade e o impacto das escolhas impossíveis, tornando impossível não se envolver emocionalmente com sua história.

Além da tensão, o filme mergulha em temas urgentes: racismo, saúde mental e a vulnerabilidade das redes de apoio, especialmente para afro-americanos. Para os brasileiros, a realidade do Sistema Único de Saúde (SUS) surge como um contraste, mostrando como o acesso à saúde pode ser a última barreira contra o colapso.

Até a Última Gota não é um filme confortável. Ele nos obriga a encarar o impacto da desesperança, revelando até onde uma pessoa pode chegar quando não tem mais opções.

Mas nada prepara o espectador para o final surpreendente. Quando parece que todas as respostas foram dadas, a história vira completamente, deixando no ar um debate sobre justiça, moralidade e o fracasso social na proteção dos mais vulneráveis. Um filme que não se esquece facilmente—e que merece ser discutido muito além da tela.

Fotos históricas de Teixeira ganham vida com tecnologia




Por Daniel Rocha

Hoje, ferramentas modernas transformam fotos antigas em vídeos animados, dando a impressão de que o passado está ganhando vida diante dos nossos olhos. Mas, apesar do encanto, é preciso cautela.
Com apenas um toque, cenas outrora congeladas no tempo ganham movimento, expressão e vida, uma experiência ao mesmo tempo fascinante e inquietante até para os mais habituados com a aplicação dessa tecnologia.

Esse recurso não apenas amplia o potencial de leitura da imagem histórica, como também suscita novos debates sobre memória, veracidade e representação. Um exemplo marcante dessa nova interação entre realidade e imaginação está na animação de uma fotografia registrada em janeiro de 1987 por Adilson Gigante (in memoriam).



Fotografia de Adilson Gigante, com AI

O resultado impressiona pela riqueza de detalhes e pela precisão na preservação dos elementos arquitetônicos e urbanos, garantindo uma representação fiel da cena original, transformando a maneira como enxergamos o passado, como se pudéssemos no presente visualizar completamente aquilo que já foi.

Cantor gospel de destaque nacional, ele também se dedicou a documentar visualmente a transformação de Teixeira de Freitas. Essa fotografia, que agora faz parte do acervo de Anderson Gigante, filho de Adilson, foi recentemente animada com inteligência artificial e compartilhada por ele.

Mas essa recriação não vem sem desafios. Como alerta Anderson, por mais avançado que seja o algoritmo, alguns movimentos perdem naturalidade, parecendo rígidos ou artificiais, criando um efeito que, em vez de aproximar, pode distorcer a realidade capturada.

 Segundo o fotógrafo, ao tentar preencher as lacunas do registro original, a ferramenta pode acabar gerando detalhes que nunca existiram ou modificando aspectos sutis, mas essenciais, da realidade social que a imagem buscava preservar.

Outro exemplo animado por Anderson é uma foto ainda mais antiga, de autoria desconhecida, feita na Avenida Marechal Castelo Branco na década de 1970, época em que Teixeira de Freitas ainda era um povoado ligado a Alcobaça.



Mais uma vez, a inteligência artificial impressiona ao recriar cores e preencher lacunas visuais com grande fidelidade, romantizando detalhes que nunca fizeram parte da cena original.

Em resumo, ao movimentar o que antes era fixo, a inteligência artificial não apenas anima os corpos, mas também as controvérsias sobre o que constitui uma memória “verdadeira”.

Por isso, apesar do fascínio que essas recriações despertam, é preciso cautela. São versões que parecem autênticas, mas nem sempre são fiéis ao registro original. Ao adicionar movimento onde antes havia apenas luz e sombra, essas recriações reconfiguram a narrativa visual e levantam questões sobre a “perda da aura” da fotografia.

Esse conceito, desenvolvido por Walter Benjamin, explica como a reprodução técnica em massa , seja por meio da fotografia ou do cinema, reduz o valor único e autêntico de uma obra, tornando-a acessível e replicável, mas também menos singular.

Por fim, como toda nova linguagem, as imagens de fotografias animadas precisam ser lidas com sensibilidade histórica e espírito crítico, para que não percamos, no fascínio da reanimação, a profundidade do silêncio que uma foto antiga ainda é capaz de dizer.

Referencias:

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagens. Bauru: EDUSC, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas, v. 1).

O Silêncio – Vazio ou Essência?




Será o silêncio uma falha da linguagem? Ou será ele, como a própria existência, uma revelação do absurdo fundamental? Algumas correntes sugerem que buscar sentido — inclusive no silêncio — é fútil, pois o universo carece de significado intrínseco.

A linguagem, nessa visão, seria apenas uma construção humana, uma tentativa de cobrir o vazio existencial. Nesse abismo sem respostas, o silêncio talvez seja apenas o eco do nada, um testemunho mudo de que, por mais palavras que usemos, o essencial permanece inefável.

Outras perspectivas, porém, enxergam o silêncio como prática de sabedoria. Não por resignação, mas como exercício de domínio interior. Calar seria uma forma de resistência e autocontrole.

Num mundo saturado de ruído e vazio de escuta, o silêncio emerge como ferramenta para sintonizar a razão cósmica. Falar apenas o indispensável e aceitar em quietude o imutável — esta seria a expressão máxima da virtude.

Há ainda quem veja o silêncio como um espelho da condição humana. Diante do caos de convenções e certezas ilusórias, ele nos confronta com nossa liberdade radical e a angústia que ela carrega.

O silêncio nos obriga a encarar nossa responsabilidade única: somos nós que atribuímos — ou negamos — sentido ao que vivemos e expressamos.

Calar pode ser covardia ou ato de coragem. Pode ser o grito sufocado de quem não encontra palavras autênticas, ou o gesto supremo de quem sabe que qualquer fala trairia o indizível.

No fim, o silêncio é pura tensão dialética. Não é só falha nem só potência. Pode isolar ou unir, ocultar ou desvelar. Pode ser o deserto do sem-sentido, o porto da serenidade ou o precipício da liberdade.

Talvez o silêncio não signifique coisa alguma.

Ou talvez ele contenha tudo.

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