Caravelas 1985: A cidade dos pescadores






 Por Daniel Rocha

Um vídeo documentário amador, intitulado "Viagem a Caravelas", postado no YouTube pelo perfil Gilberto Filho, proporciona um registro de uma viagem realizada por dois turistas, residentes do Rio de Janeiro, à cidade de Caravelas, situada no extremo sul da Bahia.

Além de retratar a experiência dos turistas, o vídeo destaca fragmentos das memórias e instantes da vida dos pescadores e das praias dos distritos da Barra e Ponta de Areia. Essa produção revela diversos aspectos sobre a região e a cidade, bem como fornece informações valiosas sobre os trabalhadores e trabalhadoras do mar.

Conforme mencionado em textos anteriores neste site, como na reportagem intitulada "Extremo sul: um paraíso cheio de problemas", na década de 1980, a região do extremo sul foi promovida em jornais e revistas nacionais como um novo destino turístico, apesar das dificuldades estruturais e sociais que eram ignoradas pelos anúncios e reportagens. Por exemplo, um artigo do jornal do Brasil de 1986 destacou: 

"Ainda há cidades históricas não invadidas pelo turismo de massa.  Caravelas, Alcobaça e Prado, no Sul da Bahia. Chega-se lá de ônibus a partir de Vitória (ES). (...) Além da compensação cultural, o circuito oferece muito sossego, praias encantadoras, passeios de barco, divertidas pescarias e boa cozinha regional, baseada no peixe e a preços de fato modestos".

Esse discurso e os aspectos da realidade descritos pelo jornal podem ser percebidos no vídeo amador que apresenta as perspectivas dos turistas sobre o município de Caravelas de forma explícita ou implícita no contexto vivenciado pelo local, o qual, segundo os diálogos, já era familiar aos visitantes.

Na década de 1970, o historiador Marc Ferro, em seu artigo "O filme: uma contra-análise da sociedade?", argumentou sobre o uso de filmes e registros imagéticos como documentos históricos passíveis de utilização pela historiografia, afirmando que "A crítica não se limita somente ao filme, integra-o no mundo que o rodeia e com o qual se comunica necessariamente".

Assim, com base no postulado de Marc Ferro, no registro explícito do vídeo é possível observar o trajeto dos turistas até o extremo sul e a cidade de Caravelas, bem como as dificuldades de acesso e os problemas estruturais enfrentados em uma região que possuía estradas precárias. 

Destacam-se a Estrada do Boi e a BR-101, esta última com pouco mais de 15 anos desde sua inauguração, em estado lastimável de conservação. A BR-101 é a principal via de acesso à região, servindo como transição entre o Sudeste e o Nordeste do país, reforçando, assim, a narrativa do subdesenvolvimento nordestino, presente também no vídeo.

Quanto aos moradores, o vídeo enfoca os distritos pesqueiros da Barra e Ponta de Areia, habitados por homens e mulheres trabalhadores do mar, cujas vidas estão entrelaçadas por fortes tradições, laços familiares e comunitários. Além disso, o vídeo retrata a cidade de Caravelas como um destino turístico com arquitetura e atmosfera coloniais, que se organiza para receber turistas e valoriza sua cultura.

Além dos aspectos explícitos, o registro amador capta falas, sotaques e lembranças de alguns moradores dos distritos pesqueiros, bem como eventos relacionados à rotina e ao mundo do trabalho, aos circuitos sociais de vivência, à oralidade, às crenças e à fé por meio dos relatos de memórias. 

Um exemplo disso é o causo narrado por um pescador sobre a pesca de um peixe grande. De acordo com a narrativa registrada no vídeo, esse pescador da Barra conta que, durante a semana santa de 1962, teve a sorte de pescar um peixe espadarte com uma tonelada de peso próximo a um lugar chamado "Ponta da Coroa Alta" em uma "quinta-feira maior", durante a Semana Santa. 

O peixe chamou a atenção de todos e, na época, foi avaliado em 2000 réis, uma quantia significativa para uma pessoa comum. No entanto, o pescador decidiu não vendê-lo para cumprir uma promessa feita antes de entrar no mar: se pescasse um peixe grande naquele dia, dividiria entre todos da comunidade, vizinhos e amigos pescadores. 

Ao chegar à Barra, ele cumpriu sua promessa, após entregar a parte pertencente ao dono do barco de pesca, com o qual ele provavelmente arrendou ou pegou emprestado, tendo como acordo dividir igualmente tudo o que fosse pescado naquele dia santo.

O causo do pescador também revela aspectos da sociabilidade da época, estranhos aos visitantes do Sudeste, e um imaginário local que reforçava uma cultura voltada para o coletivo, algo cada vez mais raro com o crescimento das novas rotas rodoviárias e do desenvolvimentismo capitalista a partir da década de 1970.

No início do vídeo, também é possível observar uma incipiente cultura do eucalipto emergindo, com pequenas mudas plantadas às margens da BR 101. Isso ilustra o modelo político de organização social permitido pelas forças governamentais da época e as transformações sofridas pela paisagem rural. Essas realidades e elementos transcendem a intenção inicial do vídeo, que foi produzido exclusivamente para exibição a um público privado.

Em suma, o vídeo documentário amador intitulado "Viagem a Caravelas" oferece um olhar sobre a região e a cidade através da perspectiva de turistas que exploram a beleza natural, a cultura e a vida dos pescadores locais. 

Ao retratar as dificuldades de acesso e os problemas estruturais enfrentados pela região, assim como a sociabilidade e os valores comunitários dos trabalhadores do mar, o vídeo proporciona insights valiosos sobre a realidade vivenciada em Caravelas.

Além disso, ele revela elementos da história e da paisagem rural que refletem o contexto político e social da época. Ao fazer uso desses registros imagéticos, o vídeo documentário se torna uma importante fonte histórica que ajuda a compreender e contextualizar a vida e a cultura da região.



Daniel Rocha*

Historiador graduado e Pós-graduado em História, Cultura e Sociedade pela UNEB-X.  Contato WhatsApp: (73) 99811-8769 e-mail: samuithi@hotmail.com. O conteúdo deste Site não pode ser copiado, reproduzido, publicado no todo ou em partes por outros sites, jornais e revistas sem a expressa autorização do autor. Facebook 

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