O mamão na história de Teixeira de Freitas: lembranças dos “boias-frias”



 Por Daniel Rocha

Conforme o texto anterior, alguns  jornais e revistas  da década de 1980 e 1990, O Estado de São Paulo, Revista Globo Rural e uma revista local, ocultaram relatos e informações sobre os trabalhadores do campo empregados nas roças produtoras de mamão na cidade de Teixeira de Freitas, BA, e na região do Extremo Sul da Bahia, ao noticiar a fase de maior destaque da cultura do mamão no cenário nacional e internacional.   

Embora ausentes nesses documentos, a memória dos trabalhadores permanece viva e contada através dos relatos orais de alguns dos antigos trabalhadores rurais que residem na cidade. Lembranças que são  narradas e recontadas para vizinhos, parentes e interessados  em saber um pouco mais sobre a rotina dos “boias- frias”, alcunha dada aos trabalhadores rurais que no almoço comiam suas marmitas frias.  

Relatos que no presente ajudam a conhecer um pouco mais da rotina de uma das principais força de trabalho responsável pelo desenvolvimento agrícola da cidade e região, como os contado informalmente por  João Soares Ferreira que no início da década de 1980 trabalhou como pedreiro e encarregado dos trabalhadores de uma roça produtora de mamão em Juerana (Caravelas)  pertencente a um senhor conhecido como “Bolinha” e um “Japonês” que não lembrou o nome. 

Conforme narra João Soares Ferreira, o popular Tião, que é natural da zona rural e morador da cidade desde 1970,  todos os bóias- frias com quem trabalhou em 1981, quando era encarregado de “buscar e trazer trabalhadores da cidade para roça e da roça para cidade” , eram oriundos do então povoado de Teixeira de Freitas. “Um grupo de 15 homens e 15 mulheres, alguns com leitura, outros não, velho e novo, tudo misturado, na maioria moradores do bairro Castelinho.” 

Ainda  de acordo com ele, a jornada de trabalho  destes trabalhadores (as) era “sol a sol” começava às 07 horas e terminava às 17 da tarde. Como não voltavam para casa para o almoço, estes trabalhadores, como todos do mamão,  tinham que levantar cedo, preparar a marmita e enrolar no pano “para não deixar azedar” e ir para o ponto onde passava o caminhão para  levá-los até a roça.   

“Lembro que tinha uns rapazes e umas moças que deixava todo mundo admirado pela disposição, chegavam da roça as 17hs tomava banho e ia para boate dançar até de madrugada. A marmita preparava a noite e colocava na bolsa que levavam para a boate. Quando dava a hora o carro pegava eles na porta do salão. Quando subia no caminhão o fedor da marmita azeda levantava. O pessoal dizia brincando lá vem as marmitas azedas.” 

Os trabalhadores (as) rurais eram levados na carroceria do automóvel que  contava com alguns bancos e era aberto ao tempo. O horário de  busca variava entre 04 e 05 horas da manhã. Ainda conforme a perspectiva do antigo encarregado, todos  trabalhavam com carteira assinada.   Na lavoura homens iam para colheita e as mulheres ficavam para o embalo e encaixotamento do mamão, de modo que na época do plantio todos trabalhavam na roça e  apesar do rigor dos patrões, os agricultores  descendentes de japonês “eram  bons pagadores.”  

A narrativa rememorada por João Soares Ferreira vai de encontro a perspectiva da análise regional feita  por José Koopmans, no livro: Muito Além do Eucalipto,  que diz que “Apesar das péssimas condições de trabalho oferecidas, a lavoura de mamão absorveu grande quantidade de mão-de-obra durante alguns anos.”   

Ainda durante o bate-papo sobre o assunto, Tião recordou de forma espontânea um acontecimento que traz informações e uma outra perspectiva sobre o dia-dia dos trabalhadores rurais urbanos nas roças da fazenda que para além de mamão também produziam melancia e melão.  Ele rememorou em tom de causo que em um dia do ano de 1981, o caminhão que costumeiramente prestava serviço de transporte dos trabalhadores (as) parou na estrada depois de “bater o motor”  deixando o grupo de empregados sem ter como voltar para casa.    

“Deu a hora e nada de caminhão. Dava cinco horas e todo mundo parava. Não podia comer o mamão. O japonês dizia que não podia deixar os peões comer mamão porque trinta peões comendo mamão não ia sobrar nenhum. A gente olhava para a estrada e nada de farol. O caminhão tinha batido o motor. Naquela época era ruim de achar um disponível.”  

Conforme conta, com o avançar das horas, e percebendo que ele e os trabalhadores (as) teriam que passar a noite no local,procurou os patrões, antes que eles fossem embora, e pediu que os mesmos liberassem a sede administrativa para os agricultores (as)  passarem a noite. Também  solicitou permissão para poder ir  comprar  alimentos para a  “peãozada” em uma mercearia próxima  com a “Suruana”, Pick- Up da Willys, disponível na fazenda.  

“Chegando na mercearia eu disse para o dono que também era japonês, Japão o caminhão não veio buscar a turma de Bolinha aí eu vim a mando do patrão fazer uma feira para o café, almoço e janta. Ele olhou pra mim e falou que podia mandar pegar o que quisesse.  As mulheres pegaram feijão, arroz, carne seca e biscoitos, eu peguei quatro litros de Catuaba porque já estava doido pra tomar uma.”  

Depois de cumprir com a obrigação proposta, retornou com as mulheres ajudantes para  fazenda  com o carro carregado de mantimentos. Ao chegar no local onde os patrões já não estavam,  encontrou os trabalhadores “acesos e assanhados de olho nas trabalhadoras” dizendo coisas como: “hoje vou dormir com a mulher de fulano, com essa e com aquela.”  

 Ao notar o clima ruim tratou logo de ordenar as ajudantes que o acompanharam até a mercearia para preparar “o jantar da turma” na cozinha da sede. Chamou as mulheres assustadas para mais perto e as orientou a improvisar camas com os maços de jornais utilizados para “enrolar mamões” no espaço da casa onde passariam a noite.

Aos homens pediu que fossem “se recolher no barracão”, que ficava ao lado da sede da fazenda, e também improvisar suas camas com os de jornais . Ainda conforme contou, também pediu para que eles fossem tomar banho em uma lagoa existente nas proximidades do lugar porque o único banheiro existente na sede ele tinha reservado para as mulheres. “Mulheres solteiras, casadas, mulheres direitas.”    

Ainda de acordo com ele, mesmo depois do jantar servido e ter censurado o mau comportamento de alguns dos homens, cantadas e piadas maliciosas direcionadas às mulheres continuaram, mas elas seguiram firmes, sérias e solidárias sem dar confiança ao assédio.  

“As solteiras até gostavam das coisas,  mas naquele dia manteve a cara fechada para os peões. Quando amanheceu o dia mandei passar uns dez litros de café e botar biscoito na vasilha e servir para todo mundo antes de começar o trabalho. O japonês e Bolinha chegaram querendo dar ordens para fazer o café, mas eu disse que já tava todo mundo organizado. O japonês indagou se era verdade que os peões deitaram e rolaram com aquele bocado de mulher, mas eu tratei logo de responder que não. Que ali ele tinha deixado um homem tomando conta da turma e não um moleque. Às 17hs o caminhão chegou para levar todos de volta para casa.”    


O relato permite visualizar e supor que naquele  período o vínculo formal de emprego (carteira de trabalho assinada) não significava que o trabalhador e as trabalhadoras, em processo de inserção no mercado de trabalho do agronegócio local, não fossem vítimas de intempéries, assédios e alguma forma de desrespeito e abuso,  na época combatido através da mobilização informal dos próprios trabalhadores e trabalhadoras que ainda não tinham o direito de realizar greves. 

Importa dizer que alguns direitos que hoje assistem os trabalhadores rurais e urbanos só foram de fato efetivado e garantidos a partir da promulgação da nova Constituição de 1988, quando alguns direitos foram ampliados e outros incluídos como, a garantia de jornada de oito horas diárias e 44 semanais e o direito de greve. Em 1989 o Sindicato Rural de Teixeira de Freitas organizou junto com outros a maior greve que a cidade já conseguiu mobilizar. A ação contou com a intensa participação dos trabalhadores bóias-frias que cruzaram os braços nas primeiras horas da manhã. 

 Fontes e referências 

Constituição de 1988 consolidou direitos dos trabalhadores 

http://www.tst.jus.br/-/constituicao-de-1988-consolidou-direitos-dos-trabalhadores

KOOPMANS. Padre José. Além do Eucalipto: O papel do Extremo Sul. 2005. 

Foto: trabalhadores do mamão. 1996. Revista Rural

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